- Enfim o grande dia. – anuncio ao entrar no quarto onde Luiza passou o dia todo relaxando e se arrumando.
Ao entrar, posso vê-la ainda descalço. Mas, caramba... Ela está deslumbrante, radiando felicidade e isso é nítido, mesmo observando pelo seu reflexo no espelho. Seus pés descalços aparecem sob o vestido branco que está arrastando ao chão. A renda branca desenha perfeitamente o colo dela e o rosto está mais corado, com mais vida. Até o sol parece apreciá-la com mais intensidade hoje. Enquanto a observo, seu cheiro me invade antes mesmo que eu a alcance.
Conheci Luiza no verão de 2001, em um acampamento, naquela época ela era apenas uma garotinha sonhadora que, por incrível que pareça, não ficou no meu pé e não concordava em nada com o que eu dizia. É estranho pensar que somos tão diferentes um do outro porque, quando estamos juntos, parece que isso nunca importou. Enfim, desde que nos conhecemos, nos tornamos ótimos amigos. Nossa relação era fiel, apesar de eu sempre ter sido um péssimo homem em questão de caráter.
Apesar de achar incrível, nunca consegui me conectar verdadeiramente a uma só mulher. Então, sempre soube que meu coração era de todas, ou pelo menos o meu corpo. A única mulher que eu tinha algo real mesmo era Luiza. A verdade é que ela sempre soube entrar e me decifrar como ninguém. Mas nunca consegui enxerga-la como algo que não fosse uma irmã e acho que esse sentimento era totalmente recíproco.
Quero dizer, a gente se entendia, ela sabia sobre tudo o que se passava na minha vida e eu sabia sobre a dela, mas nunca passamos disso. Até porque eu me conheço muito bem, a ponto de não querer estragar o que tenho com ela. Como eu disse, em matéria de relacionamentos, eu sou um traste.
- Estou nervosa. –ela declara virando em minha direção.
Neste exato momento, algo me aperta o peito e eu não sei muito bem o que é.
Beleza, eu admito, nunca fui muito com a cara do Ramon, isso não é segredo para ninguém, algo naquele cara me incomodava profundamente. E alguma coisa sempre me disse que ele não era o cara certo para Luiza, mas eu nunca disse isso tão diretamente a ela. E como poderia? Olha a cara de felicidade dela. Isso sempre foi o que eu desejei para essa mulher.
Eu e Luiza sempre fomos completamente o oposto. Lu sempre foi doce, sonhadora e passou a vida planejando um casamento dos sonhos, no pôr do sol e um vasto gramado. Eu sempre a admirei por isso e torci para que ela conseguisse. E olha onde estamos agora? Então, mesmo que eu não goste do cara, tenho que admitir, Ramon a faz feliz e é isso que importa.
- Você está mais linda que nunca. – sussurro.
Ao me aproximar dela, pego seu rosto entre minhas mãos e deposito um beijo em sua testa. Sentir o seu contato me aquece o coração de um jeito que ela sempre conseguiu fazer e, enquanto penso sobre isso, ela sorri suavemente.
- Não sei o que faria sem você aqui. – sussurra de volta e por um segundo, somos apenas nós, como sempre fomos.
- Você teria feito o melhor, como sempre fez. – então ela se afasta um pouco para me olhar, enquanto suas mãos encontram as minhas.
- Não teria. – fico um pouco em silêncio tentando absorver toda a nossa história. – Não teria dado conta sem você, Gu. A verdade é que você sempre esteve lá e, quando meus pais se foram... Sem você, eu teria caído no vazio. – seu olhar está começando a ficar marejado e sei que se eu deixá-la seguir esses pensamentos, vai começar a chorar.
Eu sei o quanto a perda dos pais a afetou e, mesmo que também tenha me afetado, sempre tentei deixar essa dor de lado para que ela pudesse se apoiar em mim. Como nossa amizade é de anos, sempre frequentei a casa do Sr. Aguiar. Eles me tratavam como um filho e eu os considerava meus pais. Aquele acidente tirou duas pessoas muito importantes na minha vida. Mas eu tenho certeza de que, para ela, foi ainda pior.
Sem muito esforço, me lembro exatamente daquele dia. Do rosto da pequena Luíza ao descobrir da perda.
Estávamos tão bem, curtindo de boa enquanto ela tentava me forçar a assistir mais um filme de romance com ela. E, mesmo que eu não curtisse muito, sabia que é o que acabaríamos fazendo no final do dia, porque ela sempre conseguia me dobrar.
E então, num piscar de olhos, tudo mudou. Em uma fatídica tarde, enquanto eles voltavam de uma visita a uns amigos, acabaram colidindo com um caminhão. Não tinha nem como tentar salvar e eu me arrepio todas as vezes que me lembro disso.
Depois da notícia, passei dias morando com ela, sem querer deixa-la sozinha. E sempre que a via se perder, tentava trazê-la de volta. Por esse exato motivo, sei que este é o momento de fazer a mesma coisa.
- Neste caso, eu teria te arrancado de lá nem que eu mesmo tivesse que descer para te buscar. – aperto sua mão tentando passar algum tipo de conforto.
- Eu sei. – ela suspira sorrindo. – E obrigada por isso.
Por alguns momentos ficamos em silêncio, apenas nos olhando e... Meu Deus, ela está de tirar o fôlego! Qualquer homem se sentiria o cara mais sortudo do mundo se tivesse a oportunidade de levá-la ao altar.
O que, tecnicamente, eu farei hoje, mas não do jeito que eu queria. Digo, que eu vou. Espera...
- Gu? – ela me trás de volta e por um segundo me sinto meio perdido com meus sentimentos. Isso nunca me ocorreu antes.
- Ahn... Oi? – respondo olhando-a novamente e algo parece mudar. Algo dentro de mim.
- Eu disse que acho que está chegando a hora. – ela repete soltando minha mão e se sentando novamente em frente a penteadeira para ajeitar os últimos detalhes.
- Sim. – respondo meio desnorteado. – Lu, vou te deixar terminar, ok? Te espero lá fora. – comento buscando qualquer desculpa para sair dali. De repente o ar parece ter ficado mais pesado dentro daquele quarto.
- Eu serei a de branco. – ela brinca me olhando pelo espelho enquanto pisca.
- Engraçadinha. – respondo saindo e fechando a porta atrás de mim.
Quando consigo chegar fora da casa, me deixo cair ainda sem ar no lado oposto da parede.
Ao fundo escuto vozes de pessoas animadas. A essa altura, todos os convidados já chegaram e estão buscando seus lugares para o casamento. Dou graças a Deus por ter escolhido vir para a outra extremidade. Acho que não ia pegar muito bem os convidados verem o acompanhante da noiva tento um tipo de ataque pouco antes do casamento.
O ar parece ter sumido do planeta. Tento forçar meu corpo a respirar, mas nada acontece. Por fim, tento abrir a gravata mas até isso parece meio desfocado.
- Gustavo? Tá tudo bem? – Amanda se aproxima.
Amanda era uma das amigas de Luiza. Nunca nos demos muito bem, mas sempre nos respeitamos.
- Eu... – tento buscar o ar. – Eu não sei... – admito me sentando no chão.
- O que você está sentindo? – ela pergunta se abaixando ao meu lado. Seu vestido faz um perfeito círculo à sua volta, obrigando-a a ficar levemente afastada.
- Falta de ar. Não sei, eu... – tento me explicar. – Medo? – e então ela sorri, me deixando ainda mais confuso. Passar mal é engraçado para ela? – O que foi?
- Por que demorou tanto para perceber? – ela me pergunta.
- O que? Que eu sou provavelmente um asmático? – o sorriso dela me deixa ainda mais confuso e estou começando a perder um pouco da minha paciência.
- Não, tolinho. Que a mulher da sua vida está prestes a se casar com outro. – ela diz e isso me pega ainda mais de surpresa.
- Não... Eu e Luiza somos...
- Só amigos? – ela me corta. – Só vocês se enxergam assim. Você e a Lu foram feitos um pro outro. Por qual outro motivo você acha que vocês se dão tão bem? Não teria como ter toda essa sintonia sendo tão diferentes. Vocês se completam, Gustavo. – ela comenta pegando minha mão para me ajudar a levantar.
- Você tem noção do que você está falando, Amanda? – pergunto a ela, atordoado. Mas agora, o ar parece voltar.
- A verdade? – ela diz ajeitando o vestido, já de pé. – Olha, eu sempre acreditei no "nunca é tarde para"... Então, eu se eu fosse você, tigrão... Daria adeus para a sua vida de festas e mulheres e entraria já naquele quarto para tomar a mulher da sua vida, antes que você perca a chance de fazê-lo. – ela fala enquanto ajeita a minha gravata.
- Porque...? – tento me organizar. – Nós nunca nos demos bem. Porque você está me dizendo isso?
- Porque eu amo a Luiza como uma irmã e porque sei quem é que realmente a faz feliz. – ela comenta piscando enquanto se vira para voltar para o casamento.
Tudo aquilo me pega desprevenido. Fico um tempo no jardim dos fundos tentando pensar. Eu nunca enxerguei Luiza assim. Ela era meu cristal e, admito, uma das únicas mulheres que eu realmente amava e respeitava. E, porra, eu me conheço. Eu não poderia colocar tudo a perder com ela. Lu é meu porto seguro, como eu poderia pensar em viver uma vida sem ela?
Mas ao mesmo tempo, se ela se casasse com Ramon, não seria isso que aconteceria? Eu iria perdê-la. E nem é por egoísmo, mas eu iria perder a única mulher que eu já amei na vida por medo.
Decidido, entro na casa em direção ao quarto, mas acabo topando com Lu na sala. Ela parece preocupada.
- Caramba, Gustavo! Onde você estava? Eu estava de procurando. Está tudo bem? – ela sorri com aquela cara de quem esta imensamente feliz.
- Sim, eu... – tento dizer.
- Está na hora! – ela me corta. – Acho que nunca estive tão feliz! – e é ai que eu travo. Eu a amo, mas como poderia ser tão egoísta com ela e arruinar o dia mais feliz da sua vida?
- Estou. – minto erguendo meu braço para que ela se apoie.
Para ser bem sincero, não sei como eu consegui leva-la até o altar. Não sei como eu soube exatamente para onde ir depois de entregá-la a Ramon. A partir do momento que encontrei-a na sala, o restante parece ter passado como um borrão para mim.
Então, a vejo dizer sim para o padre e sei que ali, eu perdi alguém que eu nunca tive. Não verdadeiramente. Um segundo se passa até o padre voltar a sua atenção para Ramon que parece mais paralisado que eu, só que no altar.
- Ramon, você aceita Luiza de Castro Aguiar como sua mulher?
E um longo silêncio se instala no casamento. Inicialmente achei que fosse um tipo de silêncio normal, como um suspense e tal, mas então começa a incomodar. Lentamente sinto Amanda se aproximar do meu ombro para cochichar.
- Por que você não impediu isso?
- Como eu poderia, ela está radiando felicidade. – sussurro sobre o ombro.
O silêncio continua. Em pé, em frente ao padre e todas essas pessoas, sinto Luiza começando a ficar incomodada. O sorriso desaparece lentamente do seu corpo dando lugar a um leve desespero e sei que ela está começando a ficar ansiosa de novo. Enquanto meu olhar segue na direção de Ramon, tento acalmar minha melhor amiga pelos pensamentos, o que, claramente, não adianta nada. Meu irmão, fala alguma coisa ou eu juro que eu mesmo vou ai te bater, mentalizo. Dessa vez, diretamente para Ramon.
- Ela está radiando felicidade agora? – Amanda pergunta novamente e isso me irrita um pouco.
- Desculpa, Lu... – Ramon começa pegando todos de surpresa. – Eu não consigo.
Eu nunca vou me esquecer da expressão no rosto dela. Os ombros dela se curvaram levemente para frente e seus olhos começaram a marejar. Ela não esboçou nenhuma reação, não brigou, não xingou... Ela só ficou parada. Sei que estava pensando no que faria a seguir.
- Gust... – Amanda tentou me conter mas era tarde.
As coisas passaram em câmera lenta naquele momento mas eu lembro exatamente de tudo o que aconteceu. Eu vi Luiza desabar dentro de si naquele instante, enquanto isso, dentro de mim algo fervilhava de raiva. Como ele teve a audácia?
Lentamente, eu corri até o altar e, antes que eu pudesse me segurar, meu punho direito atingiu Ramon no queixo que caiu sentado no chão.
- Como você pôde pensar em magoar ela? – berrei para ele. Admito que isso assustou um pouco os convidados que neste momento já estavam de pé comentando sobre todo o ocorrido. Mas eu estava pouco me fodendo para isso. – Você acaba de machucar a mulher mais incrível que já passou pela sua vida. Como você pôde?
Eu queria ter mantido minha atenção nele e terminado o trabalho que eu estava fazendo. A raiva era tanta que eu mal sentia a dor na minha mão pelo impacto. Só a sensação de ver o rosto dele vermelho com sangue escorrendo pela boca valia qualquer dor. Mas fui arrancado do meu atual estado quando Amanda me puxou pelos braços. Mesmo que eu tentasse me desvencilhar dela, as palavras "ela está saindo" me tiraram do transe bem a tempo de ver o rastro do vestido branco balançando ao vento enquanto virava a curva da casa e sumia de vista.
Sem pensar duas vezes, corro atrás dela.
- LU, PARA! – tento gritar mas ela parece não escutar. Acho que, assim como eu, Luiza entrou em seu próprio transe. Em seu próprio mundo. Sua cabeça deve estar a mil e sei disso.
Decido segui-la em silêncio e, por alguns segundos, corremos sem que eu saiba a direção para onde vamos.
Depois de subir um morro, Luiza acaba desabado no banco de um mirante. Ao vê-la se sentar, paro de correr, para deixá-la respirar um pouco. Depois de um tempo, vejo seu corpo se curvar para frente enquanto ela esconde o rosto entre as mãos. A essa altura, seu vestido branco está sujo na barra e sei que isso deve ser o que menos tá incomodando ela nesse momento.
Merda. Eu devia ter previsto isso. Deus, como eu queria evitar que isso tivesse acontecido. Ver ela sofrer me parte ao meio. Tento me recuperar e, em silêncio peço aos seus pais que me ajudem a cuidar da nossa garota.
Depois de tomar coragem, me aproximo lentamente.
- Oi. – sussurro me sentando ao seu lado.
- Gu eu... – ela tenta formular as palavras mas não consegue.
- Eu sei. Tá tudo bem. – abraço-a forte.
Admito que estou com ódio por terem magoado ela desse jeito. Mas algo dentro de mim parece aliviado pelo casamento não ter acontecido. E não consigo deixar de me sentir um pouco egoísta por isso.
No horizonte a cidade começa a entrar em um modo noturno. As luzes das ruas se acendem enquanto o sol começa a se por. Carros em miniaturas circulam para lá e para cá. O tempo no mirante parece esfriar e resolvo tirar meu terno para colocar sobre seus ombros nus.
- Eu idealizei tudo isso. Era para ser perfeito. – ela soluça se encolhendo no banco enquanto se aninha mais se aproximando de mim.
- Eu sei... – sussurro beijando o topo de sua cabeça.
- O que eu fiz de errado, Gu? – ela volta seu olhar para o meu e a raiva me invade novamente.
- Nunca! -pego seu queixo para que possa enxergá-la melhor. – Nunca se culpe por isso, ok? – ela tenta se desvencilhar para olhar para o chão mas volto o seu olhar para o meu novamente. – Lu, a culpa não foi sua. Se tem algum culpado nessa história é aquele babaca. – comento virando meu rosto para outra direção enquanto solto seu queixo no exato momento em que sinto a dor pulsar pela minha mão.
- Foi muito feito? -ela pergunta segurando minha mão com delicadeza. Volto meu olhar para ela antes de responder.
- Acho que mais para ele. – admito sem conseguir evitar de sorrir.
- Você não precisava...
- Eu sempre vou cuidar de você, Aguiar. – sussurro beijando sua testa novamente.
Um longo silêncio se instala entre a gente, não é um silêncio constrangedor, é um silêncio familiar. Luiza continua perdida em pensamentos, mas sinto que ela começou a se acalmar.
- Sabe... Quando a gente se conheceu... – ela sorri antes de prosseguir e de repente para. – Deixa. Esquece...
- Fala. – volto a olhá-la enquanto busco seu rosto para que ela também me olhe.
- Não eu... Eu sabia que o que a gente tinha era real. Mas nos primeiros anos, eu achava que.. – algo se agita no meu coração quando eu me aproximo mais dela. – Eu achava que um dia você iria cansar da vida que você leva. E que... – ela parece envergonhada de dizer. E então eu percebo... Não era só a Amanda. Em algum momento, Luiza também sacou isso. Como eu pude ser burro o suficiente para não perceber?
- Me desculpa. – peço encostando minha testa na sua.
- Pelo que? -ela pergunta ainda sem entender.
- Por ter demorado tanto para perceber que você é a mulher da minha vida. – sussurro aproximando minha boca da sua. Agora, consigo sentir sua respiração. O cheiro adocicado me invade novamente junto com uma sensação de paz. – Eu poderia ter evitado isso, se não tivesse sido tão idiota durante esses anos. -completo antes de me render e beijá-la.
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