Você é a Minha Liberdade (conto)

 



"Mudar para uma cidade onde não conheço ninguém, era de longe a última coisa que eu teria planejado fazer, mas, devido às circunstâncias, aqui estou. Em uma cidadezinha quente, em um fim do mundo, com o nome de Scare Town. Na boa, quem dá um nome desses para uma cidade? Com certeza a intenção não era atrair as pessoas para lá. E, quanto menos pessoas souberem que eu estou aqui, melhor. Então, lar doce lar, Scare Town!


Depois de planos, estudos sobre a cidade e muita mudança, a minha própria loja de artesanatos e presentes está pronta e de portas abertas.


O som da moto chega antes dele na loja chamando a minha atenção. Por favor, imploro em pensamentos, que não seja problemas.

- Bom dia. - o jovem alto, moreno, todo tatuado e com um colete entra na loja colocando um cigarro entre os lábios.

- Desculpa, proibido fumar. - anuncio apontando para uma plaquinha que está em uma das paredes, entre os vários artesanatos que fiz das praças e pontos turísticos da cidade pouco depois de vir pra cá.

- Vai ter que me desculpar por isso. - ele fala apagando o seu cigarro em um ponto da bancada. Ótimo. - Nova por aqui? - pergunta olhando ao redor com um ar de superioridade. É tudo o que eu preciso. Um cara com ar de quem manda na cidade pra ficar no meu pé.

- Pode-se dizer que sim. - respondo implorando por dentro pra que ele saia logo.

- Bela loja. - comenta ele voltando a me olhar.

- Obrigada."


Acordo assustada com o despertador tocando e os olhos marejados de lágrimas. Porque sempre sonho com o começo de tudo? E porque sempre no dia em que tudo teve um fim? Quando conheci Jack não imaginava a importância que ele tomaria em minha vida. O quanto me apaixonaria por ele e muito menos que teria que passar o resto da minha vida sem ter ele ao meu lado. O amor que vivemos marcou a mim, a ele e principalmente, a todos da cidade que não acreditaram quando começamos. Não os julgo, eu mal podia acreditar que estávamos realmente juntos.


Jack nunca foi um cara comum, daqueles que me despertavam interesse. Ainda assim, depois de tanto insistir, ele conseguiu. E então, há exatos cinco anos atrás, ele se foi. Ao tentar salvar um garotinho no incêndio da fábrica de tecidos. Um acidente terrível que chocou toda a população de Scare Town, principalmente pelo fato do motoqueiro politicamente incorreto da cidade ter perdido a sua vida tentando salvar um garotinho. Por algum motivo, aquele garoto tinha pulado as grades da fábrica para pegar a sua bola que havia caído ali. Momentos antes, um bêbado da cidade, tinha começado o incêndio ao entrar na fábrica escondido da falha segurança. Mas como o garotinho poderia saber? Ao entrar nas dependências da fábrica, ele se viu tentado a ver o interior e, quando estava entrando, eu e Jack passamos na porta de moto. Eu só tomei consciência do que estava acontecendo, quando Jack parou a moto e pulou dela me implorando a gritos para eu não sair dali. Com agilidade, ele pulou as grades e entrou correndo na fábrica. Foi ai que eu vi a fumaça saindo. Aflita, liguei para o corpo de bombeiros, que chegaram pouco tempo depois, mas o estrago já tinha sido feito. Esperei por horas por Jack do lado de fora, até receber a notícia de que ele nunca voltaria. Infelizmente, o garotinho que ele fora salvar, também não resistiu. E ali eu perdi o grande amor da minha vida.

- Merda, Jack. - praguejo jogando meu braço no lado da cama onde ele deveria estar. - Eu faria qualquer coisa para te ver mais uma vez.

Aquele seria o quinto dia 31 de outubro, sem ele. E, a pequena cidade de Scare Town se preparava para mais um halloween mágico e assustador. A festa tinha direito à parque infernal, casa do grito e doces ou travessuras na rua. Neste dia, em questão, as escolas fechavam e apenas alguns lojistas abriam para aproveitar o movimento na cidade. A noite das bruxas de Scare Town, atraia visitantes de todos os cantos para a assustadora cidade.

Como qualquer outro dia, decido ir pra loja, mas, no fim do expediente, ao voltar para casa, percebo algo parece diferente. O ar parece mais pesado, como se algo estivesse por acontecer. Ao virar a esquina da rua da loja vejo um garotinho parado em um dos becos do outro lado da rua, ele parece sujo de fuligem e um pouco perdido. Me certifico que não vem nenhum carro, para atravessar e ver se ele está perdido, mas ao voltar o meu olhar para o beco, ele não está mais lá, é como se estivesse evaporado. Tento ignorar isso, e volto para o meu caminho.A cidade está cheia e todos parecem preocupados com o evento da noite. 


- Você tem ciência da deusa que é? - eu escuto um sussurro que fez a minha espinha gelar. Foi exatamente o que Jack disse quando coloquei o seu colete depois dele insistir durante uns bons minutos. Olho ao redor para ver se é alguma pegadinha de mal gosto, mas estou sozinha na rua.


- Tá, eu definitivamente detesto dia 31 de outubro. - resmungo decidida a chegar em casa.


Em cinco anos morando nessa cidade, a única pessoa que eu realmente me importava se foi e os nossos amigos, bom, eu acabei me afastando de todos. Não me leve a mal, eu vim pra cá para ter uma vida discreta. Foi Jack quem me trouxe de volta à vida e então, sem mais nem menos ele se foi. E é assim, perdida em pensamentos, já com a lua brilhando no céu, que eu sinto o seu cheiro passar por mim, como uma lufada de ar. Droga, o que está acontecendo hoje?


- É o véu entre os dois mundos, minha querida. - uma senhorinha de, aparentemente, uns 90 anos segura meu braço me assustando. Eu falei isso alto?


- Como? - pergunto sem entender.


- O véu entre os dois mundos. - diz ela em uma voz aterrorizante e, ao perceber que eu não faço ideia do que ela está falando, ela continua. - Em todo dia 31 de outubro, quando as barreiras entre os dois mundos enfim falhar, mortos e vivos andarão juntos novamente e você poderá ver aquele que jurou amar. - Eu só posso estar sonhando com isso. Assim como surgiu, a senhorinha sai andando, olhando para todos os becos e ruas, procurando por alguém.


Olho no meu relógio e descubro que faltam poucas horas para a festa começar. Tempo de sobra pra chegar em casa e preparar a minha própria noite sozinha.


Ao chegar em casa, sinto algo diferente. Tem alguma coisa fora do lugar, mas não consigo descobrir o que é. Vou até a cozinha e pego um copo de água. E é então que a minha ficha cai. Sei exatamente o que está fora do lugar.

Volto correndo pra sala e, ao chegar lá eu o vejo. O bem mais precioso que Jack tinha depois da moto, seu colete, está em cima da poltrona. Deixo meu copo de água cair em choque. Eu estou ficando louca? Tenho certeza de que ele estava no guarda roupas, lá em cima. Como ele poderia ter vindo parar aqui? Olho ao redor pra ver se tem alguém em casa, mas não tem nenhum movimento. Nada. Sou só eu e o colete.


Lentamente, caminho até a poltrona e pego-o entre as mãos levando até o nariz. Seu cheiro ainda está ali.

- Como queria que você também estivesse, Jack. - sussurro subindo com ele em direção ao quarto.


Depois de dormir um pouco, decido tomar um banho na banheira e, ao sair, coloco o colete no corpo ainda úmido. Ao longe, escuto os sinos da igreja anunciando que são meia noite. Caramba, por quanto tempo eu dormi?


- Nunca vou me cansar dessa visão. - a sua voz, em alto e bom som, me tira dos meus pensamentos. Ao me virar para a porta do banheiro, Jack está parado, com aquele olhar provocante e aquele sorriso sedutor. O seu cheiro chega até mim antes mesmo dele. E, por um segundo é como se ele ainda estivesse ali. Quero dizer, realmente ali, não só nos meus pensamentos. Sinto meus olhos se encherem de lágrimas.


- Isso é impossível. - sussurro levando as mãos até os lábios.


- Nada é impossível, querida. - ele responde abrindo os braços para que eu o alcance. Mas, como? Lentamente caminho até ele examinando-o desconfiada.


- Como você pode estar aqui? - sussurro perguntando.


- Precisei fazer muitos favores pra isso. - ele garante dando de ombros. Sei que ele está orgulhoso por isso, apesar de tentar demonstrar que não é nada demais.


- Não, é sério. Isso não pode ser real. - declaro parando a cinco passos de distância dele.


- Bom, você vai ter que testar pra ver. Confia em mim? - ele pergunta e eu sei que, não importa se não for real, eu quero acreditar que sim e aproveitar isso. Então, a voz da senhorinha me volta à mente. "quando as barreiras entre os dois mundos enfim falhar, mortos e vivos andarão juntos novamente". Entre lágrimas e sorrisos, termino com o espaço que restava entre a gente e pulo nele cruzando minhas pernas em sua cintura.


- Caramba, amor. Que saudades disso. - ele sussurra no meu pescoço.


- Se isso for um sonho, garanta que eu jamais acorde dele. - declaro. - Eu não aguento mais sem você. - assumo sentindo as lágrimas rolarem.


- Aguenta sim, eu nunca sai do seu lado. E, agora, vou poder te ver uma vez por ano, bebê.


- Como assim? - olho-o sem entender.


- Eu nunca achei que isso fosse real. Nunca tinha perdido ninguém que eu realmente me importasse para saber. Mas ficar longe de você, estava me deixando doido. - ele começa a me explicar. - Então, fiz algumas amizades e descobri, que todo dia 31, as barreiras entre os dois mundos ficam fracas e, se você conhecer as pessoas, ou os mortos certos, você consegue atravessar elas e visitar quem você ama. É por um curto tempo, mas eu precisava que você me visse. Precisava dizer que eu estava aqui todos os dias ao seu lado. Mesmo que você não pudesse me ver. Minha promessa foi real, amor. Eu nunca vou sair do seu lado. Na vida e na morte. - ele sussurra no final me beijando apaixonadamente.


- Não tem como fazer isso ficar permanente? - pergunto olhando-o. - Por favor.

- Amor, não dá pra enganar a morte. Não para sempre. - ele fala me levando de volta para o quarto. Sua mão segura minha bunda e lentamente, ele nos senta na cama e acaricia meu rosto. 

- Eu te amo por ter tentado salvar aquele garotinho. Mas te odeio pelo mesmo motivo. - sussurro.

- Eu sei, eu sei. Me desculpa por isso. Eu precisava fazê-lo. 

- Até quando você pode ficar? - pergunto ao me deitar ao seu lado na cama. 

- Até o sol nascer. - ele responde e sinto nele, a dor que atravessa o meu corpo. - Você se lembra do dia em que decidimos morar juntos? - ele pergunta e a lembrança surge clara na minha mente.

- Lembro. Você me disse que iríamos enfrentar muitas coisas mas que, não importa o que estivesse por vir, nosso amor não era coisa desse mundo ou dessa vida. A gente daria conta de contornar qualquer coisa pra ficar juntos. - repito as palavras que ele me disse naquele dia. Naquela época, achei que ele estava falando das pessoas da cidade ou do meu ex maluco que me perseguiu até aqui. Mas hoje sei que isso se aplicava a qualquer coisa que viesse.

- Qualquer coisa para ficar juntos. - ele repetiu firmando a sua promessa. 

- Eu te amo. - sussurro segurando seu rosto entre as mãos.

- Eu te amo. - ele responde selando nossos lábios com um beijo. Naquela noite, decido não dormir. Me recuso a perder um segundo sequer ao lado dele. Jack me conta que o garotinho que ele tentou salvar foi quem conseguiu fazer com que ele atravessasse a barreira para me ver. 

- Amor, - ele chama a minha atenção depois de um bom tempo conversando. - eu preciso que você me prometa uma coisa. - o seu tom de voz muda e tenho medo do que está por vir. - Se eu não voltar ano que vem, você tem que seguir. - há dor em sua voz e seus olhos lacrimejam. 

- O quê? Não! - respondo em um soluço. - Qualquer coisa para ficar juntos. - repito para ele a promessa que fizemos.

- Eu sei, eu sei. Mas você tem que seguir. Eu sei que um dia nos reencontraremos de novo e ficaremos juntos. Mas se algum coisa acontecer e eu não aparecer ano que vem, eu vou me detestar por saber que você ficou presa a mim. - ele explica.

- Eu nunca me senti presa, pelo contrário. Jack, você é a minha liberdade. - admito para ele. 

Ao escutar minhas palavras, ele me toma em seus braços e me beija apaixonadamente. Sinto sua imagem ir desaparecendo antes mesmo de ver o primeiro raio do sol.

- Eu te amo. - ele sussurra antes de ir por completo. Uma lágrima cai dos seus olhos antes que eu não possa vê-lo mais.

- Eu te amo. - respondo já sozinha em nosso quarto. - Você é a minha liberdade. 


Naquela noite, dormimos juntos como não fazíamos a muito tempo e decidimos que, dali pra frente, repetiríamos isso todos os anos no dia 31 de outubro, até descobrir como tornar isso permanente.


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